Será possível humanizar o Sistema de Saúde?


Esta geração nasceu e cresceu ouvindo histórias tristes de gente simples que sofreu as conseqüências da insuficiência do sistema público de saúde do Brasil. Noticiários de TV e jornais sensacionalistas, de forma recorrente, trazem ao público manchetes e matérias que inflam a insatisfação e a revolta popular mostrando casos que afrontam o senso de dignidade humana dos brasileiros.

São situações que variam entre a falta de remédios, de profissionais habilitados, passando pela carência de recursos e equipamentos para realização de exames, para os quais, não raramente, pessoas são atendidas no chão dos corredores dos hospitais. Além disso, as longas esperas que chegam a durar oito, dez horas para atendimento de ‘emergência’ (vez ou outra alguém morre nessa situação) são circunstâncias que beiram a tortura e lembram cenários de guerra e campos de concentração. 

Em se tratando de atendimento especializado o cenário é ainda mais complicado. A falta de profissionais em algumas regiões mais distantes dos grandes centros é gravíssima e os problemas com a infra-instrutora dos hospitais e postos de saúde de algumas localidades chegam a ser escandalosos.

Além destes exemplos, muitas outras histórias pitorescas e bizarras são colecionadas no cotidiano do SUS - Sistema Único de Saúde, Brasil afora.

‘Bizarro’, aliás, é um termo adequado quando se ouve a história de gente que espera há 15 anos por um procedimento cirúrgico, ou ainda uma mãe que sofreu a perda de um filho pela utilização incorreta de um fórceps.

Diante desse quadro dantesco, São Sebastião do Paraíso, sem sombra de dúvidas, chega próximo de fazer jus ao sobrenome. No entanto, ocasionalmente, a população reverbera alguma reclamação sobre situações desagradáveis envolvendo atendimentos médicos, tanto pelo SUS quanto através dos planos de saúde que aqui operam.

A rede social Facebook aos poucos vem se tornando uma espécie de “muro das lamentações” da sociedade e a partir dela podemos medir um pouco do nível de insatisfação do povo, seja no modo de atendimento oferecido por parte dos profissionais de saúde, na forma como se dão as consultas e também nos prazos dos atendimentos.

Neste novo momento da sociedade, USF´s – Unidades de Saúde da Família, Farmácia Municipal, Pronto Socorro, Santa Casa, clínicas e postos de convênios particulares estão sob a mira implacável e honesta da população que, ao sentir-se desrespeitada em alguns de seus direitos, rasgam literalmente o verbo na internet, que vem se tornando a verdadeira ouvidoria do povo.

Um dos pilares de qualquer projeto governamental, a Saúde é um desafio gigantesco para gestores em todas as esferas da administração pública. A constante busca pela criação e pelo aperfeiçoamento de um sistema de saúde sério, eficaz e humano vem sendo debatida há muito tempo no Brasil. Embora venha sendo indignamente utilizada como matéria de discursos eleitoreiros, ela é de fato uma demanda fundamental para que o desenvolvimento humano do povo brasileiro seja elevado a níveis dignos e que correspondam ao nível de riqueza que a nação produz e de recursos que a população gera através dos estrondosos impostos que paga.

A Saúde 
A OMS - Organização Mundial de Saúde define “saúde” como "um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades".

Esta é uma definição moderna desse bem e que tem origem numa análise realizada a partir de três planos ou dimensões: saúde física, saúde mental e saúde social.

Saúde é direito fundamental da pessoa humana, devendo ser assegurado sem distinção de raça, de religião, ideologia política ou condição socioeconômica. Não é um bem individual e nenhum indivíduo sentirá esse bem quando, em seu derredor, existem muitas pessoas sofrendo pela falta dele.

Portanto, a saúde é um valor coletivo, um bem de todos, devendo cada pessoa gozá-la, individualmente, sem prejuízo de outrem e, solidariamente, com todos.

A história do Sistema de Saúde no Brasil
Foi através da Lei Eloi Chaves e a criação das Caixas de Pensão e Aposentadoria, no ano de 1923, que ocorreu a primeira iniciativa do Estado brasileiro para a construção de um sistema de proteção social.

Desde então, até o final de 1980, o que pode ser reconhecido como sistema de saúde se pautava majoritariamente pela noção de seguro social, que garantia acesso apenas aos contribuintes, que financiavam essa assistência a partir de contribuições descontadas sobre suas folhas de salário. 

Mas foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que se adotou o conceito de seguridade social e houve a criação do SUS - Sistema Único de Saúde, que se aliou a melhor tradição de proteção social, consagrando a saúde como direito de todos e um dever do Estado.

Além do SUS, a nova Constituição também regulamentou as iniciativas privadas de saúde, com o sistema supletivo de assistência médica.

Nestes termos, representa um enorme desafio, qual seja a construção de um sistema de saúde universal em um País da periferia do capitalismo com as características do Brasil, isto é, grande extensão territorial, populoso, com carência de recursos financeiros, marcado por grande heterogeneidade regional, desigualdade e exclusão social. 

Sistema de Saúde Humanizado
Pra definirmos bem o que seria um sistema de saúde, é necessário ir por partes. 
Primeiro: o que é um sistema? Simples de escrever sobre, extremamente abrangente de aplicar seu conceito, mas bem difícil de compreendê-lo plenamente, um sistema é o conjunto de elementos inter-relacionados que interagem no desempenho de uma função. Podendo ser utilizado em qualquer contexto, no nosso caso aqui, relacionado à saúde, “Sistemas de Saúde são construções sociais que tem por objetivo garantir meios adequados para que os indivíduos que porventura venham a adoecer, necessitando de assistência e sem condições de pagar por ela, tenham garantido acesso aos serviços disponíveis na sociedade para tratamento e recuperação de sua saúde” (Cartilha do Sistema de Saúde do Brasil – USP).

Sobre o termo “humanização”, existem alguns conceitos ou tentativas de definição na literatura. Para a Grande Biblioteca Larousse Cultural “humanização é o ato de humanizar, ou seja, dar estado ou condições de homem, no sentido de ser humano”. Para o Ministério da Saúde humanização diz respeito a “uma mudança de cultura na atenção aos usuários e na gestão dos processos de trabalho no Sistema de Saúde”.

Segundo Suely Ferreira Deslandes, doutora em Ciências Sociais e Mestre em Saúde Pública, relacionado à Saúde, o termo “humanização” deve ter seu significado amplificado, compreendendo a um conjunto de iniciativas que abrangem uma assistência que valoriza: 1) a qualidade do cuidado do ponto de vista técnico; 2) o reconhecimento dos direitos, da subjetividade e da cultura do paciente; 3) a valorização do profissional da saúde.

Sobre esses, os “profissionais da saúde”, estudos apontam que uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos sistemas de saúde no Brasil está intimamente ligada ao fato de que os mesmos, por terem uma formação biológica, técnica e positivista, encontram certo embaraço em lidar com o lado “subjetivo” dos usuários.

William Osler

Para o médico canadense William Osler (1849-1919), que foi quem lançou as bases da medicina e da metodologia modernas do trabalho médico e possuía uma vasta cultura humanística, médica e filosófica, “o profissional da saúde deve valorizar tanto os seus conhecimentos da doença quanto da pessoa, recomendando a medicina de beira de leito”.



Opinião de cidadãos que participam

Carina Miranda

Tendo vivido a rotina de quem atua diretamente com os usuários do SUS em uma USF de Paraíso, Carina Porfírio Miranda acredita que a busca pela humanização do Sistema deve abranger um “embasamento holístico, que compreenda a subjetividade do indivíduo, no qual elementos como afetividade, escuta e diálogo promovam um cuidado integral no acolhimento do paciente”. Em fase de conclusão de sua pós-graduação em Oncologia, a Enfermeira entende ainda que “o sistema de saúde se encontra muitas vezes rígido, focado em práticas pré-estabelecidas por normas políticas, o que, em conjunto com hierarquias verticalizadas e processos de decisão centralizados, impedem a flexibilidade das ações, tirando a autonomia do profissional de saúde”.

Patrícia Chicaroni 

Durante nove anos Patrícia Chicaroni atuou na Santa Casa de Misericórdia de São Sebastião do Paraíso oferecendo acolhimento psicológico a pacientes e também a parentes de pacientes em momentos de luto. Para ela, “deveria haver um treinamento em humanização do atendimento em saúde publica, promovendo o cuidado com os ‘cuidadores’ e a motivação no trabalho em equipe afim de que os profissionais estejam mais qualificados e preparados para lidar com pessoas em sofrimento físicos ou emocionais”.

Outros fatores frisados pela psicóloga “para um bom atendimento no SUS, deve ser avaliado o perfil do profissional” e também a “ênfase em um salário justo, pois o profissional bem remunerado trabalha com mais prazer”, concluiu.


Julio Caleiro Pimenta

Em concordância com o pensamento de Osler, Julio Caleiro Pimenta é taxativo em dizer que “saúde pública começa com humanismo”. Nutricionista em Paraíso, ele acredita que virtudes como o “altruísmo e a compaixão” devem andar sempre juntas com tudo o que foi adquirido na vida acadêmica. Com um pensamento semelhante ao da enfermeira Carina, ele também vê que “alguns profissionais confundem 'equipe multidisciplinar da saúde', com ‘hierarquia da Saúde’” e ainda ressalta que “o SUS é um sistema de saúde belíssimo no papel, mas que tem muito a melhorar para oferecer um atendimento digno aos brasileiros”.

Marcelo Morais

Membro do Conselho Municipal de Saúde, Marcelo Morais vê que “o SUS está cada vez mais distante do cidadão”. Para ele, as razões desse distanciamento se dão por fatores como “a forte pressão sofrida pelos profissionais da área, a falta de uma gestão competente dos recursos públicos e também a impaciência dos usuários”. Marcelo, que também é professor, relembra que “a questão da saúde foi tratada como uma audaciosa promessa de campanha por parte do atual prefeito, o que agregou um peso de responsabilidade ainda maior em sua administração”. O professor ainda salientou dois pontos importantes, que em sua opinião, redundariam em melhoras ao serviço. “Primeiro, pagar bem os profissionais, para que possa haver cobrança e não haja falta de interessados a preencher as vagas. Segundo, oferecer uma estrutura digna de trabalho, com local adequado para os atendimentos e não um Pronto Socorro como o de Paraíso”.

O SUS em busca da humanização
O movimento em busca da humanização já acontece no Ministério da Saúde há dez anos, quando a Pasta promoveu em Brasília a Oficina Nacional HumanizaSUS, sob o tema “Construindo a Política Nacional de Humanização”. A iniciativa serviu para recolher propostas e sugestões visando o aprofundamento das definições políticas sobre o tema e envolveu a participação de Ministros, gestores da área da saúde, membros de autarquias e de outras secretarias do governo federal, além de representantes de todos os estados da Federação.

Já naquela ocasião ficaram claras algumas situações, entre elas: a desvalorização dos trabalhadores de saúde, a fragilidade das relações de trabalho, o baixo investimento em treinamento dos trabalhadores, a pouca participação na gestão dos serviços e os frágeis vínculos com os usuários.

Os Sistemas de Saúde pelo mundo
Uma breve avaliação sobre os países que possuem os melhores sistemas de saúde do mundo, nos quais a população se diz satisfeita, é fácil notar que a primeira causa de nossos resultados ainda modestos é o pouco investimento feito pelo Governo Federal.

Enquanto o Brasil gasta cerca de 4% de seu PIB - Produto Interno Bruto com a Saúde, o que representa algo em torno de 900 dólares per capita, as nações listadas como as melhores do mundo na área gastam em média três mil dólares por cidadão.

O Canadá, um dos países da lista, utiliza 8% de seu PIB em Saúde, uma despesa per capita é de 4,3 mil dólares.

Lá, os médicos não são funcionários públicos, embora sejam pagos pelo governo.

No Reino Unido, são investidos 8,2% do PIB em Saúde e seu sistema de saúde foi criado depois da Segunda Guerra Mundial. Lá, há uma ligação maior entre médico e paciente, já que ele tende a estar no mesmo bairro de residência do paciente.

Na Espanha, o Sistema se comunica com o paciente através de cartas, e-mails e SMS marcando e confirmando consultas.

Já a França, país que despende 9,3% do PIB na área da Saúde, teve seu sistema de saúde eleito como o melhor do mundo pela OMS - Organização Mundial de Saúde. O sistema francês é relativamente complexo comparado ao SUS brasileiro, misturando seguro público com contribuições na folha de salários. Em boa parte dos casos, o atendimento não é gratuito, mas o governo reembolsa parte ou toda a despesa.

IDSUS - Índice de Desempenho do SUS
A fim de realizar uma avaliação do desempenho do Sistema, o Ministério da Saúde criou o IDSUS - Índice de Desempenho do SUS. Esse indicador faz o monitoramento da qualidade dos serviços prestados na Saúde Pública brasileira, considerando as Atenções Básica, Ambulatorial e Hospitalar e também as Urgências e Emergências de cada cidade do Brasil, através de informações repassadas às bases de dados nacionais, como IBGE, Ipea e outros.

Apesar de ter sofrido várias críticas, inclusive a de que a Saúde deve ser avaliada como um todo e não somente o sistema público isolado do privado, o índice trouxe à tona uma realidade interessante sobre nossa região. 

Em uma pontuação de 0 a 10, a média nacional do IDSUS foi de 5,47, enquanto que a de Minas Gerais foi de 5,87. Paraíso alcançou 6,31 pontos na avaliação, mas algumas cidades bem próximas tiveram notas realmente elevadas, como é o caso de Cássia dos Coqueiros (SP), que alcançou 8,13, São João Batista do Glória, com 7,94, Altinópolis 7,89 e também Alpinópolis que fez 7,58 pontos. Todas essas figuraram entre as melhores colocadas do Brasil.

Mesmo assim, pesquisa recente realizada pelo Ibope mostrou que 61% dos brasileiros consideram a saúde como a área mais problemática do país, à frente da segurança e da educação. Portanto, aqui em Paraíso, bem como na maioria esmagadora dos municípios da nação, esse índice não representa satisfação popular. 

Um refino simples no estudo revela que menos de 2% da população vive em locais cujos serviços receberam nota 7,0 ou acima disso e, em números, menos de 4 milhões de cidadãos brasileiros têm acesso a uma saúde pública apenas regular e o restante amarga condições bem difíceis.

Conclusão
No que tange ao nosso Sistema de Saúde, não somente o público, mas também os planos particulares, humanizar deve significar a oferta de um serviço com padrão coerente ao nível de dignidade que todos os indivíduos almejam.

Em praticamente todas as religiões, sociedades e filosofias antigas é possível encontrar a “regra moral da reciprocidade”.

No Talmude Judaico, está escrito: “O que é odioso para ti, não o faças ao próximo. Esta é toda lei, o resto é comentário”; na Bíblia Sagrada dos Cristãos está a frase de Jesus: “tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós a eles”; o Mahabharata, um dos livros sagrados do hinduísmo diz: “não faças aos outros aquilo que se a ti for feito, te causará dor” e ainda existem tantos outros escritos antigos que afirmam que esse “princípio de reciprocidade” é um fundamento das relações humanas.

Traduzindo para os dias atuais, o que precisa ser construído dentro desse Sistema é simplesmente o ideal do respeito.

O verbete ‘respeito’ tem sua raiz etimológica o sentido de “olhar outra vez”, ou seja, respeitar tratar outra pessoa com grande atenção, com um cuidado redobrado e tudo o que se espera daqueles que trabalham num local que se propõe a cuidar da saúde das pessoas é isto.

Enquanto não houver uma visão de igualdade, consideração e estima pautando todas as ações e relações do povo, por menores e mais simples que sejam, é impossível que se construa um sistema de saúde humano.

Utopia?

Rafael Cardoso

Fontes: portal.saude.gov.br/, saude.gov.br - Cohn A,Elias PE. Saúde no Brasil: políticas e organização de serviços; “Constituição da Republica Federativa do Brasil”, 5 de outubro de 1988; “Humanização da Assistência Hospitalar no Brasil”, de Ianaia Monteiro Mello.

Comentários