Um pensador como Kant, cujo senso de humor poucos percebem, escreveu em seu Ensaio sobre as Doenças Mentais que a burrice é uma doença. Ao burro, diferente do ingênuo ou do louco, falta entendimento. Aquela capacidade de pensamento que nos permite conversar com os outros e entender o que dizem e até mesmo o que lhes dizemos. Quantos falam sem pensar? Nietzsche, por sua vez, falou da estupidez de um jeito mais simples: uso de viseiras, ou “estreitamento da perspectiva”. Mas somente com Bouvard e Pecuchét, de Flaubert (publicado no Brasil pela editora Estação Liberdade), é que a crítica à burrice atinge seu ápice ao tocar no caso sempre notável da burrice dos inteligentes e da inteligência dos burros. Ou dos que, querendo ser inteligentes, são sempre os mais abestalhados. O erro dos dois amigos trapalhões criados por Flaubert era a crença de que a informação e a experimentação seriam suficientes para o sucesso da ciência. Ao final de Bouverd e Pécuchet, o famoso Dicionário das Ideias Prontas, um fichário de preconceitos de pensamento, é a prova linguística e histórica da acomodação mental que se expressa em palavras e da incapacidade de compreender que está em sua base.
Também Robert Musil, em uma conferência de 1937, percebeu que a burrice muitas vezes se confunde com aquilo que os antigos chamavam de “espírito”. Espírito, a propósito, é aquilo que hoje em dia ainda aparece na “sacada” ou no “tá ligado?” dos mais jovens. Quando alguém pergunta “tá ligado?”, pesquisa a inteligência do outro. Musil referia-se a uma estupidez estética e afetiva que fazia com que povos fossem incapazes de amar a arte, por exemplo. Mas essa estupidez não oferecia nenhuma certeza, pois se tratava de uma questão de gosto. E o que poderíamos fazer com algo como gosto? Musil mostra que a burrice é um pântano onde chafurdam os que se metem a falar nela.
Mesmo mantendo a dúvida que salva qualquer um da estupidez, Musil sugeriu em seu texto que aquele que deseja falar da burrice comece sustentando a própria inteligência contra tudo e contra todos, em vez de atuar no politicamente correto, humildemente dizendo que é um burro falando de bestas. Pois para ele pode ser estúpido parecer inteligente, mas nem sempre é inteligente passar por estúpido. O medo de parecer estúpido também fará com que alguns se sintam inteligentes evitando dizê-lo. Pior ainda se seu desejo de parecer burro for associado à vaidade: o estúpido é sempre vaidoso porque não tem inteligência para ocultar.
A burrice como categoria moral
Na história a burrice aparece como uma categoria do pensamento marcada justamente pela ausência de raciocínio. Theodor Adorno percebeu que ela é uma categoria moral. Adorno compara a burrice a uma paralisia. Se o corpo é paralisado por um ferimento físico, o espírito o é pelo medo. A burrice, diz ele, é uma cicatriz que surge de uma inibição e que se transforma em repetição. É uma deformação relativa à capacidade de pensar, de criar – quem repete pode nunca inventar nada –, mas também de agir daquele que teve experiências tão negativas a ponto de se tornar burro. Não é burro apenas quem pensa errado, mas quem pensa com inibição. Quem age de modo inibitório também. O medo seria o seu moto inevitável.
A ideia de que a burrice é uma categoria moral parece estar em vigência no Brasil de modo explícito. A ausência de debate, de espírito crítico, o culto da ignorância ou a política do xingamento, a aceitação de qualquer ideia como “politicamente correta” ou “incorreta” – para muitos o correto hoje é ser incorreto, mas raramente alguém se pergunta sobre isso –, sem a verificação da pertinência de cada ideia em si mesma e em sua conexão com o que está ao redor, são traços visíveis da cultura no cotidiano e nos meios de comunicação. Bem como no debate acadêmico de cunho fundamentalista, aquele que se aferra a ideias prontas ou simplesmente crê na exegese dos textos ou na mera aplicação dos métodos, como encontro da verdade.
Nesse sentido, seria bom rever a história do conhecimento em relação às ideias prontas que também são falhas, mas seria melhor ainda começar por refazer a história pensando em como não repeti-la.
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