Lições da histeria coletiva gerada por caso de adultério no Whatsapp


Sabe-se que as tecnologias acabam condicionando as nossas práticas sociais. Mas entenda aqui condicionar no sentido de criar novas possibilidades, de ser um ponto de partida e não um limitador. O filósofo francês Pierre Lévy desenvolve bastante esse conceito no livro Cibercultura(lançado aqui no Brasil em 1999 pela Editora 34).

Um dos pontos da cibercultura, segundo Lévy, é a inteligência coletiva que “é uma inteligência distribuída por toda parte, na qual todo o saber está na humanidade, já que, ninguém sabe tudo, porém todos sabem alguma coisa”. Com o crescimento da internet e a consequente popularização do seu acesso, os indivíduos na sociedade contemporânea cada vez mais desfrutam do ciberespaço e das novas práticas sociais possibilitadas pela sua utilização.

Dessa forma, um cidadão, hoje, em posse de um smartphone devidamente conectado à internet, é capaz de acessar, produzir, modificar e compartilhar uma gigantesca quantidade de informação. Faça as contas: segundo o site Internet Live Stats, em apenas um segundo 31,693 gigabytes de dados são gerados na internet.

Mas infelizmente informação não é conhecimento e nem todas essas possibilidades são utilizadas de maneira construtiva. Até onde essa liberdade é positiva? Quais são os impactos causados por esse ciberespaço, esse ambiente virtual no ser humano real?

O trato e o convívio social

Onde Sancho vê moinhos, Dom Quixote vê gigantes.

Mas nesse caso podemos ler essa frase ao contrário: “Onde Dom Quixote vê gigantes, Sancho vê moinhos”. Na segunda-feira, dia 14 de dezembro, as redes sociais (principalmente o Whatsapp) se transformaram num verdadeiro balcão de bar e as pessoas passaram a discutir um flagrante de adultério ocorrido em Minas Gerais. A trama lembra um verdadeiro roteiro de novela mexicana: o marido traído flagrou a esposa saindo do motel com o melhor amigo e concunhado (ele é casado com a irmã da esposa infiel). Tudo isso devidamente registrado por um outro “amigo” dos envolvidos.

Não quero aqui citar nomes nem apelidos para não perpetuar a propagação desse evento. Meu intuito é discutir a repercussão desse episódio. Faça uma reflexão, de tudo o que você leu, pesquisou, compartilhou ou recebeu desse acontecimento, aponte rapidamente quem é o vilão, ou a vilã, dessa história toda.

O primeiro ponto a ser refletido é que esta é uma história real, não se trata de um filme ou de uma série acompanhada avidamente no Netflix. As pessoas daquele vídeo não são personagens criados para o seu entretenimento; elas são tão reais quanto eu e você. Dessa forma, por serem pessoas reais, não podemos rotulá-las como personagens de mais uma trama midiática que estamos tão acostumados a acompanhar. Enquanto o nosso cotidiano volta ao normal e damos oplay no próximo vídeo que recebemos, o estrago causado pela exposição desse episódio vai acompanhar essas pessoas, seus familiares e seus filhos, infelizmente, durante muito tempo (espero que não pelo resto de suas vidas).

A repercussão e os transtornos causados, sejam eles psicológicos ou relacionados à imagem dos envolvidos, estão sendo muito maiores do que o ato em si. Avançamos tanto no desenvolvimento tecnológico e parece que, ao mesmo tempo, retrocedemos no trato e no convívio social. É como se quebrássemos a perna de uma pessoa que tentou furar a fila na nossa frente.

Interpretar e questionar os conteúdos

Fala-se muito em liberdade de expressão e das possibilidades criadas a partir das novas tecnologias de comunicação, mas fica uma indagação: qual o limite dessa liberdade? Segundo meu xará Felipe Pena, no livro Teorias do Jornalismo, a “liberdade é um princípio não absoluto, submetido a um outro, muito maior, que é a dignidade humana, e os seus limites são os da alteridade, ou seja, o respeito pelo outro”. Segundo Eduardo Damasceno, em artigo publicado no portal Fórum, é necessário que se perceba que a protagonista dessa história é, na verdade, mais uma vítima. Não é aceitável que se exponha dessa forma algo tão particular, tão íntimo, que deveria ser explicitado apenas nas barras dos tribunais, resguardado pelo sigilo judicial que as causas de família recebem. E nesse caso, o grande vilão é você que passa essa história para a frente. A inteligência coletiva se transforma numa histeria coletiva, foram criadas piadas sobre a situação, memes, músicas dos mais variados estilos (Funk, Sertanejo e até um Forró Saint Tropez) e o mais trágico disso tudo foi perceber que os perfis do Facebook dos envolvidos foram compartilhados.

Mais triste do que acompanhar o caso pelas redes sociais foi observar que os principais portais de notícias do país passaram a noticiar a repercussão desse caso. O boteco de bar abriu uma filial nas redes sociais e fez um puxadinho em alguns setores do jornalismo.

O homem tem medo do caos, que tem no desconhecido um dos seus fundamentos. Segundo Felipe Pena, a natureza do jornalismo está no medo, o medo do desconhecido, que leva o homem a querer exatamente o contrário, ou seja, conhecer. Tentamos ter o dom da ubiquidade através da alteridade, pois a ilusão da onipresença é construída pelas informações produzidas pelo outro.

Este evento torna-se um reflexo de como a sociedade está utilizando as ferramentas comunicacionais no seu dia a dia. O povo discute e cria conteúdo sobre um caso de adultério. Em consequência, os veículos de comunicação, que deveriam informar e produzir conhecimento para a população, ao invés de refletir sobre as consequências do evento, seus envolvidos e o que podemos aprender com isso, aprender enquanto seres humanos, preferem tratar o caso como mais uma notícia a ser clicada na área de entretenimento do portal.

Na era das redes sociais e da facilidade que temos em compartilhar o nosso cotidiano e as informações que produzimos/recebemos, devemos, primeiramente, aprender a interpretar e a questionar a qualidade ou a relevância dos conteúdos que chegam até nós. Precisamos aprender a compartilhar a nossa condição humana antes de apertar o “enviar”.

Fontes:

Eduardo Damasceno – Somos todos Fabíola

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